Soninha Francine*

Eu poderia estar falando de veias, músculos, órgãos e tecidos do corpo humano; de seiva nas árvores; de ar nos ambientes que frequentamos ou de águas fluviais – mas a circulação a que me refiro é de pessoas na cidade. Mais especificamente, no centro das cidades.

A cidade que bem conheço (que estudo, observo, vivo) é a minha São Paulo. Amo este lugar. Amar não é ignorar os problemas, é se dispor a lidar com eles e, quem sabe, contribuir para resolvê-los…

A história do centro de São Paulo, como de outras metrópoles, intercala, no tempo e no espaço, luxo e sofisticação, vitalidade popular, vazios e aridez. “Sou do tempo em que usávamos luvas para tomar café na Rua São Bento”, dizia minha avó. “Sou do tempo em que não se andava no calçadão de tanta gente”, diz minha mãe. Hoje a São Bento tem espaço de sobra. Comércios fechados, prédios vazios, fachadas nuas, cartazes de “aluga-se”.

Na época do aperto surgiu a palavra “trombadinha” para se referir aos adolescentes que aproveitavam a multidão para levar bolsas e carteiras. Nestes tempos de menor movimento, as pessoas temem por seus celulares, que hoje servem de carteira. Sentem-se inseguras. Têm medo de se ferir, de serem assaltadas, de se perder.

Lotado demais ou vazio demais são sintomas de problemas de circulação. Como restaurar o fluxo saudável, insuflar vida nas ruas? Não há iluminação ou câmera de segurança que restaure a confiança de andar em ruas sempre desertas… Gente em movimento, isso sim faz diferença.

As pessoas se movem pela vida impulsionadas por necessidades e desejos. Pense na organização de produtos em um supermercado: os artigos “de primeira necessidade”, como arroz, feijão, farinha, ficam nos corredores mais ao fundo. As pessoas são induzidas a circular pelas prateleiras com as “desnecessidades” que apelam aos desejos… Ao lado do caixa, um último apelo ao útil e ao supérfluo: isqueiros e balinhas, barbeadores e revistas ladeiam a fila, tornando útil até mesmo a espera. Nos shopping centers, o trajeto entre uma escada e outra é o mais longo possível, para que a caminhada “dê ideias” de necessidades e desejos.

Para que o centro da cidade tenha circulação e vida, a combinação de necessidades e desejos é vital. Como em ambientes não construídos, a biodiversidade se faz necessária. Ruas são vivas quando pessoas circulam por variados motivos em variados horários. Morar, trabalhar, estudar, almoçar, ir à farmácia, namorar, comprar um jornal, passear com o cachorro, assistir a uma peça de teatro, jogar bola, olhar vitrines, tomar uma cerveja, pedalar, ir à igreja, comer uma pizza: quanto mais isso tudo estiver disponível em nosso querido centro, mais vivo ele será, mais vida teremos.

E que seja vida próspera e solidária. Que hoje aqueles que não estudam nem trabalham, só almoçam se alguém fizer uma doação, não têm nenhum poder de compra, não têm muito espaço para desejos, tantas são as necessidades, também se beneficiem desse movimento, dessa circulação, também tenham mais saúde e mais vida. A cidade somos todos.

* Secretária Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo

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